segunda-feira, 8 de agosto de 2022

 



Free Will

 

He was hesitating. Could he possibly follow the same path he’d followed until then? Yes, from here outside, from where we’d met, we could say yes, but it should equally be said that this didn’t mean no’ wasn’t also the only possibility. In his condition, he wouldn’t go very far. He’d been walking in circles, circles with an ever-shrinking radius, all of them however drawn from the same center, the same impulse. Nevertheless, all directions he’d had a glimpse of from that point seemed to come from what he’d lived until then. Nothing would change. He’d remain the same. Suffice to watch those who’d come before him to erase all trace of doubt. Looking back, he noticed that what was deep and meaningful in himself hadn’t really changed, but transformed. Immutable at the center. He’d never felt things that way until he’d come up to that door. Not that he had pondered them, he’d felt them, and that feeling had revealed a truth. He was now a man in possession of his own truth, the key to his destiny. How had he wandered and waited until it was delivered to him. Not The Truth, of course, Absolute and impersonal. Just his truth, and that was enough for the moment, given he was alone. As he stood in front of that door, he was hesitating. Going through it would be something new. Not like staying out there, where, for better or worse, he could always at least see the people around him. He was alone and scared of what might follow. He could scarcely see, at most his intuition could give him a hunch on what was ahead, and he knew that somehow from that point on it was intuition and not reason, as he was used to, that would guide his steps. He’d lose reason, and that changed everything. It would become something unique, impossible to imitate. Some would say that entering or not was a matter of free will, but he felt as if there wasn’t another thing to do. Key in hand, free will was for him just as real as anyone with him now, and there was nobody there in that moment other than his memories, illusions. This was free will, then: an illusion. With courage coming from the conviction that he couldn’t have acted any differently, he came in and the door closed itself behind him. What served as an entrance for him now couldn’t be of any good to anybody else. It was his, and only for him and to him would it open. Never again would that repeat itself. Nobody would enter, nobody would leave. He himself wouldn’t be able to leave. Isn’t that how it goes with the life of every man? He would continue to be himself, but he was already transformed. He couldn’t go back, and even if he could, nothing would be changed in what he’d been transformed. There was no other choice. There never was one for those outside not living a life but their own. For him, free will had to be left outside.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Fora de Forma




Amanhecia quando seus companheiros precipitaram-se pela escada. Pouco depois, faria o mesmo. Seria o último a deixar o alojamento, e o deixaria. Ao menos era o que poderíamos esperar, afinal, em todos aqueles anos, pouquíssimas vezes deixou de cumprir o que cria ser seu dever, e quando isso aconteceu tinha sempre consigo uma boa justificativa. Nunca fora punido. Se se demorava ali era porque sentia necessidade de ficar só antes de fardar-se e se atirar naqueles oito lances de escada que unem o alojamento ao pátio interno do quartel, onde se juntaria aos demais cadetes para formatura matinal. A despeito da expectativa que poderíamos, então, acalentar em relação à sua pessoa, restavam pouco menos de cinco minutos, e não demonstrava inquietar-se com as consequências de um provável atraso. O toque do corneteiro advertia, mas portava-se como se não lhe dissesse respeito. Permanecia ensimesmado diante da janela do banheiro a sondar o mar. “É tão vasto que parece conter algo maior que ele próprio”, murmurou, não sem alguma excitação, ao notar em suas águas o reflexo do sol que se erguia no horizonte. Chegava-lhe ainda, embora cada vez mais distante, o ruído surdo e cadenciado da batida dos coturnos de seus colegas no chão duro do pátio interno. “Estão entrando em forma. O chefe de turma provavelmente terminou a contagem e deve estar comunicando minha falta ao tenente”. Sabia que caso se ausentasse, sem uma justificativa convincente, seria severamente punido. Ainda assim, não a tinha. Só a terá décadas mais tarde. Até lá, seu comportamento será entendido como uma estúpida e insensata afronta às normas, como se caprichosamente tivesse se erguido da cama motivado por uma rebeldia efêmera e pueril. Não, não era o que se passava. Era algo mais profundo e, por isso mesmo, difícil de alcançar e debelar. Tudo ia acontecendo tão espontaneamente que não conseguia sofrear. Era como se sua existência fosse deixando de seguir como um toco em enchente para fixar-se num ponto distinto e imprevisto, à margem de tudo o que até então reconhecera como vida. 

A correnteza seguia, mas não o levaria. Dali onde se isolara,  não sem um misto de melancolia e orgulho, assistia à cena em que seus colegas seguiam em frente, enquanto contemplava a corrente à qual sua vida e as deles encontravam-se, até aquela manhã lhe suceder, atreladas. Houve quem ao passar por ele o admoestasse por demorar-se ali, imóvel, prevenindo-o de que seria punido e que o mais sensato seria entrar em forma imediatamente. Não lhes deu atenção. Não poderia. Não com aquele horizonte emergindo diante de si, sobre si, em si. Sentia-se envolvido, dominado por algo maior que ele próprio. Em seu silêncio pressentia algo singularmente intenso a desvelar-se em seu destino. Aconteceu-lhe, ao contemplar o mar, o que mais tarde denominaria “sentir-se ser” e “sentir-se ser” representava, para ele, uma perturbadora e irresistível maneira de ver a si mesmo tomando parte no mundo e, ao mesmo tempo, ausente dele; uma forma de desviar-se, de perder-se para vivenciar as angústias e as alegrias imanentes a um tortuoso processo de redescobrir-se. Tudo ressurgia sob uma perspectiva nova. Minutos antes, parecia-lhe natural pensar que, naquele instante, era ele, e não seus colegas, quem estava a fazer nada, apático. Agora, ao acontecer-lhe de “sentir-se ser”, interpretava as coisas como que pelo avesso: “são eles, e não eu, que permanecem passivos”. Não fazer nada passou a significar, dali em diante, fardar-se, diplomar-se e seguir numa direção e cadência que não lhe seriam ditadas pela sua própria natureza.

sexta-feira, 8 de abril de 2022







 O Velho Lutador


Le Funambule



Quando um boxeador está desferindo um golpe, ele baixa a guarda. Nunca estará tão vulnerável como quando em busca de uma grande e inédita vitória. Talvez por isso muitos não se atrevam a deixar as poltronas para subirem ao ringue. Acomodados em suas poltronas não se sentem vulneráveis. O Velho também passou longos anos de sua vida acomodado numa poltrona. Parecia bem como todos ao seu lado, mas não estava. um dia percebeu que poltronas podem ser perigosas e começou a se sentir desconfortável. Não lhe fizeram bem. Deram-lhe coceiras...


Nesse dia o Velho, embora velho, pressentiu que uma decisão começava a se delinear em seu peito. Nervoso, pressentia as consequencias, pressentia o que enfrentaria em silencio até que sua voz fizesse calar todas as outras que passaram a assombrá-lo desde o momento em que caíra. Sabia que teria inicio a maior luta de sua vida; uma luta que se desdobraria em si mesmo. A idade que para muitos é um convite a se acomodar, para ele se tornara uma vantagem. Mais experiente sabia que quem se arrisca a viver a grande luta de sua vida em algum momento precisa aprender uma importante lição, e ele a aprendeu. Custou-lhe caro o aprendizado, mas hoje sabe o que os que não subirem ao ringue jamais saberão. 


Anos atrás sofreu um nocaute, é verdade, mas engana-se quem pensa que o Velho, embora velho, fora aniquilado. Na queda tentara se agarrar às cordas, mas seus braços, conquanto hipertrofiados e fortes, não foram capazes de suster o peso daquela derrota. Fora à lona, como também sucede aos grandes pugilistas, e nela se deixou ficar enquanto observava o mundo dar-lhe as costas para reverenciar o novo campeão. O Velho caíra enquanto atacava, e não havia quem o protegesse. 


Quando as luzes do ginásio se apagaram, o Velho se viu sozinho. Sentia-se derrotado, desnorteado, mas, sobretudo, sentia-se sozinho. A sequência de golpes que lhe fora imposta, se não severa demais, como argumentam alguns leigos afundados em suas poltronas, indubitavelmente, atingira-o em pontos críticos. “Você é forte. Muitos teriam sucumbido em seu lugar. Deveria dar-se por satisfeito em ter saído inteiro daquela luta.”, afirmam os amigos que presenciaram sua queda. Por mais que repitam isso quando se encontram, o Velho, embora velho, não está nada satisfeito, e orgulhoso como é, desconfiado como é, se não vê em tal argumento um motivo para se consolar, muito menos se dá por convencido. Ademais, ele não sente ter saído inteiro daquela luta, como pensam seus amigos. Algo lhe fora subtraído e o Velho o quer de volta. Quando ainda convalescia, era possível notar que a derrota o abalara profundamente, mas algo inominável deu-lhe a firmeza de que necessita um homem para retornar às origens e recomeçar. O Velho teve de engolir o próprio orgulho, reconhecer erros e se tornar um aprendiz novamente. Como ele próprio o diz “A derrota me mandou para o fim da fila de uma hora para outra, e eu não conseguia compreender como aquilo havia acontecido. Mais do que um título eu havia perdido a mim mesmo."


"Todo mundo dizia para eu seguir em frente, mas eu não tinha como simplesmente seguir em frente. Precisava descobrir aonde me perdera, precisava voltar às origens. Algo em mim dizia Volte, mas eu não voltava. Eu insistia em ouvir quem jamais estivera aonde eu estive. Eu insistia em ser quem eu nunca fui e quanto mais insistia, mais me perdia. Foi quando a urticária começou. A pele avermelhada, a coceira, os exames, os remédios, a ansiedade e o medo de tudo aquilo piorar numa espiral sem fim. Meu tempo estava acabando. Eu estava me acabando. Meu corpo falava, gritava, coçava mas eu não o ouvia até o dia em que compreendi que se havia uma solução efetiva para mim ela não estava nos remédios. Ela estava na luta. Foi quando deixei de ser um amedrontado espectador de mim mesmo para me tornar-me novamente um lutador."


Espectadores assistem; lutadores, lutam, e o Velho, embora velho, ergueu-se da poltrona e aceitou a luta para a qual a vida o destinara.


Ele não está disposto a morrer sem recuperar o que, um dia, perdeu. Terá sua oportunidade, terá sua revanche.


Mais do que uma revanche, o que o Velho busca chama-se Redenção, e redenção é o nome que dá a um gênero especial de vitória. 


É isso mesmo, o Velho, embora velho, sem títulos e desacreditado por muito dos que hoje vivem acomodados em poltronas, subirá ao ringue ainda mais uma vez. Se acaso perderá ou ganhará é difícil vaticinar. No momento, o que o Velho sabe é que não poderá passar sem lutar a sua grande luta. Não encontrará a paz que procura se jogar a toalha. Por isso, pacientemente, obstinadamente, prepare-se para quando a grande hora chegar.


Falemos um pouco de sua trajetória até o fatídico dia. O Velho tinha um futuro promissor. Ganhara lutas importantes. Por isso, embora lamentem sua derrota seus amigos dizem que é um vencedor, mas ele não se considera vencedor, simplesmente, porque para ele a luta ainda não terminou. O que está no fim é um difícil round de sua vida. Muitos não entendem isso e o desacreditam. Às vezes, com um verniz de boas intenções, aconselham-no a se aposentar, a  refestelar-se numa poltrona, orgulhar-se de seu passado e acompanhar os novos boxeadores. Mas o Velho, embora velho, não é um aposentado e nada vê em seu passado para se orgulhar se se esquivar de sua grande luta.  O Velho não chegou até onde sabe que pode chegar, ou antes, até onde algo em seu coração lhe diz ser possível, necessário, chegar. 


Sim, como disse, não se questiona que o Velho quando jovem tinha uma carreira promissora pela frente e os títulos conquistados até aquela luta não deixavam dúvidas sobre sua força e envergadura. Entretanto, depois de ter visto e ser visto sob a perspectiva de quem esteve na lona, tudo mudou. Com a derrota, sentiu como se todos os títulos tivessem sido perdidos e mais do que isso: sentiu ter perdido parte da confiança que o mundo e ele próprio depositavam em sua pessoa, e isso ele quer de volta, pois sem confiança em si mesmo homem nenhum não pode viver. 


O Velho envelheceu rapidamente depois que sua confiança foi ao chão. Tornou-se desconfiado e ansioso em relação ao seu potencial e futuro. Não pensou que perderia, mas sem dar-se conta, perdera a confiança para lutar e quando esta confiança é perdida, tudo está perdido para um homem como ele. Sem confiança, resta-nos a lona ou ocupar um lugar na platéia. Quando se perde a confiança, tornamo-nos aposentados à espera de que a campainha soe para nós. 


“Não há tempo a perder”, diz de si para si quando convidado a fazer parte das distrações e dos afazeres cotidianos dos aposentados. Assim pensa, porque o Velho, como disse, tem pressa em reaver o que perdeu. Além disso, excita seu coração a ambição de conquistar o grande cinturão dos boxeadores. Do Velho foram tomando títulos menos significativos e os que ainda conserva na parede de seu quarto apenas servem para rememorá-lo de sua derrota. Se fosse um aposentado como muitos por aí, olharia com nostalgia e orgulho para aqueles diplomas e fotografias, mas o velho sendo como é, ao mirá-los é possuído por uma raiva que o motiva nos treinos.


Embora durante muito tempo afirmara ter perdido para o mundo, esta é uma asserção sobre a qual cabem mais algumas palavras. Ela não se encaixa com exatidão ao seu caso se não acrescentarmos que o Velho perdera para o mundo porque antes disso perdera para si mesmo. Com a queda, aprendera que para vencer o mundo cabia a ele vencer-se. Deste modo, luta consigo próprio, todos os dias, longe dos holofotes e do público. Assim transcorre sua vida: a cada treino, uma luta e sempre com um adversário mais forte que o anterior, pois, como disse, a cada luta o velho torna-se mais forte, mesmo quando é derrotado. 


Perdidos os títulos, disseram que o Velho estava velho, que o Velho estava acabado. Quando começou a dar ouvido a essas pessoas tudo começou a se perder. Que os outros desconfiassem dele pouco ou nada mudaria, mas quando ele próprio começou a desconfiarde si mesmo, refugiou-se numa poltrona, e lá morreira se a urticária não o chamasse de volta o ringue. Se tudo estava perdido, nada mais tinha a perder. Deste modo, pouco a pouco, recrudesceu dentro de si o desejo de lutar mais uma vez, e sendo esta a última, teria de ser a grande luta de sua vida. O velho decidiu, então, treinar com afinco e por conta própria, mas não só: o velho é orientado pelos grandes boxeadores de todas as épocas. 


Depois que resolveu se levantar da poltrona, deixou de lado a perspectiva dos sabichões. Não compartilha mais das mesmas opiniões. Na verdade nunca as compartilhou. Sempre se sentiu um deslocado. Se ali se conservava outra razão não vê senão o medo de se arriscar. Era o que tinham em comum. O modo de vida dos sabichões, que vivem entretidos em lutas arranjadas, esquivando-se de seus verdadeiros e mais íntimos combates, deu-lhe coceiras. O que podem lhe ensinar se nunca subiram ao ringue de verdade?


Se bem que tenha tratado o Velho como um boxeador, não, ele não é precisamente o que entendemos como boxeador. Não que o Velho também não o seja, pois acredita que viver é lutar, e neste sentido a ele parece que cada um luta do seu jeito. Mesmo aqueles que preferem assistir, refestelados em confortáveis poltronas, aos grandes boxeadores, vez ou outra precisam ir à luta. Seja como for, o modo de o Velho lutar é escrevendo. Ao Velho somente importa a sua luta, a sua revanche. Ele não quer viver como toda a gente. O Velho não ter uma vida normal. Ele não quer estar junto de seus amigos aposentados na platéia. O Velho, embora velho, só quer saber de treinar; o Velho, embora velho, só quer tornar-se mais forte. Ele quer tomar de volta o que lhe fora tomado. O Velho quer o grande cinturão. Se para tal, precisar atacar novamente, ele o fará, mas dessa vez o desfecho será outro. O Velho aprendeu uma importante lição: nunca se está tão vulnerável como quando se está atacando. Por isso, quem parte em busca de um sonho precisa estar preparado para as derrotas. Elas fazem parte da vida de todo vencedor e quem acha que é se esquivando da luta que não enfrentará dificuldades e derrotas está profundamente enganado. São as dificuldades e derrotas que forjam os grandes campeões.




Petrópolis, 8 de abril de 2022


quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Redenção




Foi num domingo que tomou uma daquelas decisões que definem um caráter e seu destino. Àquela hora da manhã, não somente em sua casa mas em toda a rua, sua mãe e amigos ainda dormiam quando ergueu-se da cama decidido a tirar a velha bicicleta do pai da garagem. Se quisesse descobrir – e ele queria – o que seu pai sentia nas aventuras que lhe narrara repetidas vezes ao longo de sua infancia, e com um entusiasmo contagiante, teria de seguir em frente. Marcaram profundamente seu coração de menino, aquelas noites, logo apos o jantar, em que se deitavam na rede esticada sob um ceu estrelado e conversavam sobre as excursoes do pai. «Quando eu vou poder ir com você, pai?». «Quando for maior, meu filho!». «Promete?». «Prometo, mas agora é melhor você dormir.». O menino relutava em separar-se do pai e de suas estorias, mas cedia, pedindo-lhe, entretanto, que falasse mais um pouco até que pegasse no sono. Adormecia em seu colo e talvez sonhasse com as aventuras que o pai continuava a narrar:“Há dias em que as nuvens encobrem as montanhas e pedalamos envolvidos por elas. Não nos é possivel ver quase nada a frente. Muitas vezes, a dificuldade é tamanha que desconfiamos estar nos desviando de nosso destino. Receosos de nos perdermos ou nos acidentarmos, frequentemente pensamos em parar, e continuamos. A atmosfera e as emoçoes se tornam tão intensas que nos absorvem completamente. Em vão tentamos compreender.  Se nao encontramos as palavras que possam fixar o que sentimos é porque algo em nós vai se desfazendo, e com ele a propria significação que damos às coisas e a nos mesmos. A experiencia do desconhecido transforma nossa realidade, dissipa-a, pulverizando antigos significados. Angustia. Ja não somos mais quem eramos, e não encontrando sustentação nem mesmo em nossos mais arraigados preconceitos somos arrastados para o vazio que se abre em nossas almas. Não mais nos reconhecemos, e so podemos  gritar. Um grito angustiante, selvagem, inutil. Estamos sozinhos. Ninguém pode nos ajudar. Nesse hiato entre o que éramos e o que seremos, as ficções se alternam. Nenhuma delas prevalece. Se pensamos que agiremos segundo nossas expectativas, no instante seguinte, nos questionamos como podemos ter sido tão ingenuos. Num lapso de tempo, somos muitos e nenhum. O que nos move em meio ao desconhecido é a necessidade de reconhecermo-nos, sermos reconhecidos. Tudo se passa tão inconscientemente quanto pedalamos ou narro minhas aventuras, mas acreditamos agir de maneira consciente. Como pode um homem suportar conscientemente a duvida, a sensação de desequilibrio e a dor do desamparo de estar sob a influencia de forças desconhecidas? A mentira e o sonho são os caminhos para não darmos um fim a nossas vidas: ou nos mantemos na planicie, ou seguimos escalando nossa montanha. Proximo ao cume, descobri-me um desconhecido, solitario, nuvem de fragmentos que ora se distanciam, ora se reagrupam como num caleidoscopio. Ninguem é solido, uno e indivisivel... As imagens mudam segundo o acaso e as circunstancias. Sem a coragem de vivenciar a inconsistencia dos sonhos, não realizamos a travessia. Nossa realidade mais intima não vem à tona, não se torna consciente. Preocupados em não perder, nos perdemos em meias verdades. Não nos realizamos. Permanecemos, inacabados, escondidos atras de ficções  como crianças assustadas. Não crescemos. Se, por outro lado, encaramos o medo de viver e seguimos em frente, pouco a pouco, vamos nos sobrepondo a nos mesmos. Enlouquecemos. Não porque as incertezas deixaram de nos acompanhar, mas porque seguiremos, dali em diante, nossas vidas com a convicção de que outra realidade não nos teria sido possivel.

sábado, 13 de abril de 2019

Do Que Se Trata?

 

Capa do Livro - Obra do artista plástico e amigo Betto Pereira



I celebrate myself, and sing myself,
And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.

Walt Whitman

                                                                           
Trata-se de minha inocência minada, de minha inocência pisada, de minha inocência perdida. Trata-se de remontar às origens do mundo e de minha própria história. Trata-se de Caim e Abel, de um combate espiritual. Trata-se de não negar Deus, mas de tornar-se Deus; de não recusar a coroa ao rei, mas de se fazer rei. Trata-se de não rezar mais, de não mais pedir a benção, mas de dar a benção. Trata-se de criar, de se tornar “o divino que sorri e brinca”, de Fernando Pessoa. Trata-se de obstinadamente demonstrar a existência em si de algo que “vale a pena”. Trata-se de arriscar-se a perder a vida na aventura de gerar e viver outras vidas: a destes personagens que carrego no peito. Trata-se de esquecer, de recomeçar, de vir a ser criança novamente. Trata-se de tomar consciência de si mesmo. Trata-se de emocionar-me, de tornar-me humano. Trata-se de ceticismo e devoção. Trata-se de deixar de ser um impassível animal de rebanho, de reconhecer-me no servo que caminhava cabisbaixo ao sol, sob o temor do chicote de seu senhor, e, ainda que ciente do risco de ser fustigado no rosto e cegar, vira-se exibindo ao seu dominador uma boca enfadada de murmurar “Sim, senhor.” e dois olhos faiscantes a protestar: “Isso já foi longe demais, basta!”. Trata-se de ser tomado pelo mesmo furor deste homem em desejar mais que os outros lhe ensinaram que poderia desejar. Trata-se de atingir o que ninguém ousa atingir. Trata-se de sujeitar-se a ser perseguido, achincalhado, a correr o risco de padecer de fome e frio e abreviar seus dias por acreditar em algo maior que a própria vida. Trata-se de acreditar na liberdade do mundo do faz de conta, na potência criadora da mente humana. Trata-se, também, de dinheiro, mas de algo que nem todo dinheiro do mundo seria capaz de comprar. Trata-se de receber sem pedir, de dar aos meus pais e à minha mulher o que lhes é de direito por terem me estendido as mãos quando eu mais necessitei. Trata-se de se reconhecer vítima não meramente do meio, como crê toda gente comum, mas igualmente de si mesmo, de suas próprias idiossincrasias, virtudes, fraquezas, ambições e vícios. Trata-se de examinar a questão do suicídio, da morte, da iniquidade e da benevolência humanas, do bem e do mal. Trata-se de ouvir mais a si próprio que aos outros, uma vez que se refere menos ao senso comum que à intuição. Trata-se de, ao amanhecer, ser tomado pela angústia de escrever, de um parto sem hora marcada. Trata-se de uma necessidade diária de solidão. Não se trata, de modo algum, de não sentir dor, de não se sentir infeliz, mas de mesmo nos momentos mais difíceis não desistir de si mesmo porque compreendeu que não conhecerá o paraíso sem antes cruzar o inferno. Trata-se, então, de na fraqueza reconhecer a própria força, e na aparente insignificância e esterilidade de seus dias discernir o que há de grande e belo em seu amanhã. Também não se trata de se pensar completamente distinto dos demais - pois isto é pensar como eles, é ser como eles - mas de na multidão não me perder, não desacreditar no que apenas meus olhos serão capazes de mirar: o meu caminho. Trata-se, então, de questionar a própria noção de igualdade. Trata-se de um sentimento de raiva, de revolta que me lança ao “tudo ou nada”, contra tudo e contra todos. Trata-se de a um só tempo ir contra mim mesmo na defesa de minha pessoa. Trata-se de uma lacuna em meu ser, do martírio de uma ferida que não se cicatriza, da coexistência em meu peito de demasiada carência e um não menor amor-próprio; da necessidade de ser amado, lembrado, mas de negar-se a pedir, a fazer qualquer concessão por um gesto de carinho ou reconhecimento. Trata-se de justificar não a ociosidade, mas o gênio; não o mal, mas o bem. Trata-se de acusar. Trata-se de antes morrer de pé a viver de joelhos. Trata-se de considerar inadmissivel a existência de uma divindade se não puder participar dessa divindade. Trata-se de ser impossível, de afigurar-se irredimível se contentar com menos do que se deseja e admira. Trata-se de buscar em mim mesmo o meu próprio mundo, o meu próprio deus, o meu próprio inferno e paraíso. Trata-se da busca pela minha individualidade. Trata-se de ser homem sem deixar de ser menino; de ser humano sem deixar de ser divino. Trata-se de ser mais um na multidão ao mesmo tempo em que se dá conta de haver em si uma multidão de homens e mulheres. Trata-se de ser a regra e a exceção. Trata-se de ser contraditório, caprichoso e incoerente por não ser um, mas muitos e, por isso, ser tão incompreendido. Trata-se de mostrar-lhes “Ah! Vejam quanta injustiça suporto por não aceitar viver como vocês!”. Trata-se de um acerto de contas. Trata-se de minha vingança e de minha redenção. Trata-se de tudo o que eu tenho, de tudo o que eu sou. Trata-se de se entediar com a realidade, mas desta não prescindir. Trata-se de minha literatura, de dar vida a um mundo que satisfaça meu desejo de liberdade, comunhão e distinção que existe não apenas em meu coração, mas no coração de cada homem.Trata-se de aceitar o meu tempo. Trata-se de não condenar meu orgulho e revolta, mas de criar minha própria linguagem, revelar minha identidade. Trata-se, enfim, de tornar-me um grande escritor ou nada ser nesse mundo. 

segunda-feira, 1 de abril de 2019

A Neve



Decide preparar uma xícara de café. Enquanto espera a água ferver, dá uma espiada no jardim em frente ao apartamento. Está nevando novamente. Sorri ao relembrar o brilho no olhar do filho quando sobrevoaram a cidade e o acordou para dar uma espiada pela janela. “Tem uma surpresa para você lá fora”. “Pai, aquilo branco nos telhados é neve?”. Há semanas o filho o vinha questionando se veria neve em Paris. Respondia que talvez no final do ano. Não queria criar expectativas. Não considerava provável nevar nos últimos dias de inverno. Ao chegarem ao studio, a mulher parece ansiosa em ligar o aquecedor; o filho, encantado, não se incomoda com os dois graus negativos. Só fala em brincar no jardim. Quanto a ele, pergunta à concierge, que o guia num tour pelas instalações do prédio, se é normal nevar às vesperas da primavera. “Não era para estar nevando. Este inverno está sendo atípico. Em janeiro as temperaturas estavam acima da média. Agora, os jornais noticiam que há trinta anos Paris não vê tanta neve”. Não pergunta mais nada. Embora ainda considere sua própria presença na cidade como algo atípico, começa a sentir como se de outro modo não pudesse ser. Por mais improvável que pudessem supor anos antes, viver em Paris ganha realidade. Está em suas mãos. Ela o guia, desvela-se, aclarando-lhe o caminho. Confiante, sua atitude muda. Espontaneamente entrega-se ao que sente estar se acentuando dentro de si. Não precisa se esforçar ou pensar em coisa alguma. Ele não questiona, não procura razões, apenas deixa-se ser.  Se não sabe ao certo o que responder aos franceses quando lhe perguntam sobre o que o trouxe à cidade, sabe que Paris logo o revelará. A mulher diz que está apaixonado pela cultura francesa. Ele não o nega, não poderia, mas há algo mais. Se ainda não encontrou as palavras precisas para descrever suas sensações ao caminhar pelos boulevares, passages e cafés parisienses, sabe que é questão de tempo. Respirando a catártica atmosfera da cidade logo o encontro entre ele e suas palavras se derá tão naturalmente como agora respira. Em Paris, tudo lhe parece possível. Talvez exagere, mas não é o primeiro tampouco será o último escritor a assim se referir aos libertadores efeitos da cidade no imaginário de espíritos que, atormentados pelo desejo de ir aonde poucos ousam, sonham um dia viver sob seus famosos telhados. Para o escritor sul-africano John Coetzee, Paris é uma das três cidades no mundo em que se pode viver plenamente. "Em Paris todos querem ser atores; ninguém se resigna a ser espectador", escreve Jean Cocteau. Em seu primeiro livro, declara Henry Miller: "Em Paris tudo é elevado à Apoteose". O que sem excessos pode afirmar é que sua sensação de asfixia desapareceu. Sua impressão de estar sufocando ficou para trás. Recupera o fôlego e mergulha mais fundo. Meses depois, os primeiros textos começam a vir à tona. Aos poucos seu livro vai assumindo contornos nítidos. Seu sonho de se tornar escritor não é mais um devaneio. Realidade e fantasia se tornam indistinguíveis em Paris. Respira profundamente aliviado. Acredita ter feito o que tinha de fazer. Não há dúvidas de que esteja no lugar certo. O destino colocou Paris em seu caminho. Seu desejo de mergulhar ao fundo de si mesmo o levou até ela. Sete anos antes ele voltava angustiado da academia, em Petrópolis, quando a ideia sobreveio-lhe no meio da rua. Não teve nem tempo de pensar. Foi subitamente arrebatado, dominado pela ânsia de respirar o ar da cidade. Cinco minutos depois chegava em casa, decidido: “Vamos para Paris”. “Oba! É só marcarmos as férias!". “Não estou falando de uma viagem de férias. Estou falando de viver em Paris”. “Como assim? Com quê dinheiro?”. “Não sei”. “Sei apenas que iremos”. “Tudo bem! Se você descobrir como, eu topo. Só não vou como ilegal”, concluiu  sua mulher em tom de brincadeira, mas falando seriamente. Daquele dia em diante, nas poucas ocasiões ao longo de todos aqueles anos que antecederam a viagem, se vê um sorriso confiante em seu rosto sabe que ele pensa em Paris. Agora, enquanto passeiam com o filho ao longo do Sena ou pelos parques da cidade, frequentemente reconhece aquele mesmo sorriso e lhe pergunta: “Em que está pensando?”. Sua resposta é sempre a mesma: “Não estou pensando em nada. Estou sentindo. Você não sente a magia desse lugar? Não sente as peças do quebra-cabeça do destino se movendo depois que chegamos?”. Ela balança a cabeça, diz que não e após uma breve pausa acrescenta: “Já te falei que essas coisas não acontecem comigo”.

http://br.rfi.fr/franca/20180205-neve-e-frio-chegam-paris-no-fim-do-inverno

domingo, 10 de março de 2019

O Fascínio pelas Montanhas - O IME e a Musculação




...Em sua primeira visita à Cidade Maravilhosa, os encantos se sucedem, definem seus passos futuros. Na sala de aula em que se encontra, após distribuir os cartões de respostas aos vestibulandos, ouve um trecho da conversa entre o pai e um dos professores do ITA. “O IME não é muito conhecido pelo grande público, mas é para onde vão as melhores cabeças.”. Aquele comentário sela seu futuro. Se já havia sido seduzido pelo Rio, agora o era pelo IME. Aos treze anos não faz a menor ideia sobre qual seria sua vocação, mas não ignora seu desejo de figurar entre os melhores. Que para se tornar engenheiro militar seja necessária a vocação para a engenharia e para a vida militar, é algo que não leva em consideração. Ao chegar em casa, anuncia, decidido: “Um dia serei aluno do IME”. Os pais não o devem ter levado a sério, mas cinco anos depois os lembraria de sua decisão. Ao concluir o segundo grau, não vê razões para estagiar por mais seis meses apenas para ter um diploma de técnico em eletrônica. “Não quero ser técnico. Vou para o IME”. Não sabe se seus pais compartilham de sua confiança, mas não tem dúvidas de que gostam da ideia de um filho oficial. “Terá estabilidade!”. Preferem que antes ele se diplome, mas mais uma vez lhe dão liberdade para fazer do seu jeito. Desejam ver aonde tudo aquilo vai dar. O IME é sua meta. Não possui plano B. A ideia de cursar uma universidade particular é duplamente absurda: não tem dinheiro e mesmo as públicas lhe parecem superiores. Isso, no entanto, não significa que passe pela sua cabeça ingressar numa universidade pública qualquer. Sua ambição de estar entre os melhores o impede de seguir nessa direção. Aos seus olhos, apenas o ITA pode ser colocado no mesmo nivel do IME, mas sente que seu lugar não é mais em São José dos Campos. Não tem mais o que fazer lá. A vida o espera no Rio. Se presta o ITA, é por conveniência. Não quer esticar a corda com seus pais. “Mas você está com dezenove anos e só tem mais duas tentativas para passar num vestibular difícil como o do IME. Melhor pensar em outra possibilidade. Pelo menos preste o ITA”. Por duas vezes é reprovado, mas segue confiante. Sabe que se trata de uma questão de tempo. Simplesmente não chegou sua hora. Tem de esperar. Sempre tem de esperar. Quando se compara aos outros percebe que seu tempo não é o mesmo. Parece estar sempre atrás. Não sabe se percorre um caminho mais longo ou íngreme ou se os outros tomam atalhos que desconhece. Uma coisa lhe parece certa: se esses atalhos existem, não são para alguém como ele. Para alcançar os dificeis locais com os quais sonha terá de ser paciente, persistente.

Ao final daquele ano, pela terceira vez amarga uma reprovação. Os poucos que o incentivavam se mostram mais cautelosos. Sua mãe lhe diz que não conseguirá. Uma das poucas exceções continua sendo Nicolau, um dos fundadores do Poliedro. Um dia o reencontra no Parque Santos Dumont, enquanto se exercita. Ele o questiona sobre seus planos. Responde que estudará sozinho. Nicolau o observa por um momento e comenta: “Você chegava atrasado e parecia distraído nas aulas. Suas notas nos simulados, no entanto, o colocavam entre os primeiros. Tem potencial para passar, mas por que não se esforçou?” A pergunta não o aborrece. Chega mesmo a despertar sua gratidão e simpatia. É um antigo aluno do ITA reconhecendo seu potencial num momento em que se sentia alvo de descrença. Sua resposta é de que dessa vez conseguirá. “Na última bateu na trave”, acrescenta em tom bem-humorado antes de se despedirem.

Em outubro atingirá a idade limite permitida aos pretendentes a uma vaga no IME. Para sua quarta  tentativa, o pai pergunta se deseja se matricular no Poliedro. Continua deixando o filho escolher. Sua resposta é de que não precisa de cursinhos. Ao invés de fazer o que seria esperado para alguém em semelhante situação, se recusa a pensar em outras universidades. Coloca todas suas fichas numa única aposta. Nem mesmo o ITA quer mais prestar. “Você está louco. E se for reprovado novamente, o que vai fazer da vida?”. Não vê as coisas da mesma forma. Nunca vê quando se trata de si mesmo. Sabe que nada deseja que não seja ir para o IME. Qualquer outra possibilidade, aos seus olhos, significa desviar-se de seu caminho. “É loucura!”, não se cansam de repetir, mas há uma razão para agir assim. Talvez inconscientemente esteja evitando se sabotar ao considerar outra possibilidade. Um plano B o relaxaria e sente não ser a hora de relaxar. Nas preparações para as corridas de curta distância, aprendeu que a tensão e o medo exacerbam sua vontade e dedicação. Não duvidar do que lhe diz sua intuição é a estratégia adotada para vencer a mais importante prova de sua vida. Se antes hesitava em comunicar aos pais que não quer saber de prestar outro vestibular, agora estica a corda ao limite. A tensão é máxima. “Vamos ver se não vou conseguir.” Sua decisão é temerária. Novamente entre os extremos. Ou será aluno do IME, ou nada será. Não vê outra possibilidade à sua frente que não seja a aprovação. Seus olhos chispam de raiva quando alguém lhe diz que deveria colocar os pés no chão e fazer como alguns de seus amigos. “Não vou prestar qualquer universidade. Eu sei o que quero!” Sente que estão todos contra ele. Descobre o que um dia Villa-Lobos teria expressado da seguinte maneira: “Quem vem de baixo como eu tem que varar com fé pois vai contra a gravidade”. Pela primeira vez manifesta o desejo de algo maior que aquilo que as pessoas à sua volta lhe diziam ser possivel a alguém como ele. Pela primeira vez se recusa a se acomodar ao lugar que o mundo lhe indica ser o seu. Sente pesar sobre sua vontade essa gravidade a qual teria se referido Villa-Lobos. Não pode querer o que quer. Chamam-no de pretensioso. Se recusa a ser humilde se isso significa apequenar sua vida. Começa a se aborrecer com o ambiente ao redor. Não quer conviver com pessoas acomodadas. Espera encontrar no IME outros como ele. Sabe que lá conhecerá pessoas inteligentes, mas não é isso que procura. Não falta inteligência aos seus amigos em São José dos Campos. O que lhes falta é ambição, originalidade e ousadia. Quer estar entre pessoas desejosas de testar seus limites. Mais do que nunca sente necessidade de ir para o Rio. Sente necessidade de um lugar em que possa explorar todo seu potencial. Naquele momento, vê no Rio esse lugar. Se estiver se superestimando, a vida lhe dirá. Se estiver errado, logo descobrirá. O que não fará é deixar de tentar. Acredita que um homem de verdade não deixaria. Aos poucos começa a se distanciar das pessoas. Não tem interesse em ouvir o que elas lhe dizem sobre como viver sua vida. Seu interesse é se tornar capaz de ouvir o que a própria vida tem a lhe dizer. Como que por instinto, ao não dar ouvido aos outros, afasta o maior dos perigos: envenenar-se começando a duvidar de si mesmo. Não deixará que o privem do essencial. Não será como eles. Promete a si mesmo que ganhando ou perdendo, não fará como eles. “Seus amigos estão empregados ou se formando e nos últimos quatro anos você não saiu do lugar. Está ficando para trás porque além de pretensioso é teimoso”. “Eu vou conseguir. Vou mostrar que vocês estão errados a meu respeito.” Se acredita no que diz, age como se propositadamente tivesse deixado para última hora. Parece sempre deixar tudo para a última hora. 

Um dia ouve um comentário de um vizinho e descobre que se não o criticam abertamente, questionam seus pais pela liberdade que dão ao filho. “Estão criando um vagabundo metido a besta. Se fosse meu filho, teria ido na marra para a AMAM.” Dois anos antes ele havia sido aprovado no exame de admissão da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, antessala da AMAM. O pai se orgulhou. "Você será oficial do Exército!", era o que lia em seu semblante. Qual não deve ter sido sua frustração ao ouvir o filho dizer que não seria aluno da AMAM. “ O que eu quero é o IME”. Pela primeira vez depois de ter abandonado o colégio técnico temeu a reação de seu pai. Temeu ter levado a situação ao limite, mas sentia que não poderia ceder. O pai pareceu contrariado mas novamente deu-lhe um voto de confiança e liberdade para decidir sobre seu destino.

Naquele mesmo ano, surgiram na família as comparações entre ele e um tio que desdenhara o que mais tarde seria visto como a grande oportunidade de sua vida: um convite para cursar a mesma AMAM. “Não quero ter cabresto!”, foi a resposta do tio cuja vida viria a ser devastada pelo alcoolismo. Gostou dessa estória de não aceitar cabresto. Logo se identificou com seu tio. Entretanto, na mesma medida em que se orgulhava com a identificação, inquietava-o os riscos de semelhante temperamento, marcado por essa orgulhosa defesa da própria liberdade tantas vezes expressa em fugas ao longo da vida. Temendo as armadilhas a que poderia estar predisposto, ele que já demonstrava interesse por uma rotina mais saudável, encontra no destino de seu tio uma razão a mais para segui-la. Não quer saber de bebidas alcoólicas. Sua decisão contribui para distanciá-lo dos amigos que se iniciavam no mundo do álcool, do cigarro e das baladas. Sem desentendimentos, seu círculo de relacionamentos vai se estreitando, e ele passa cada vez mais tempo consigo mesmo. A mãe demonstra alguma preocupação. Teme que o filho esteja deprimido. Ele não se ressente de sua solidão. Não a lastima. Aceita-a como algo natural, ela que se revelaria dali em diante imprescindível. Solitário, começaria a entrever as particularidades do contexto em que fora criado e suas próprias idiossincrasias. Negá-la significaria negar a singularidade de seu destino. Não a aceitasse, não se tornaria quem haveria de se tornar. Jamais encontraria seu autêntico caminho. Jamais se entregaria a um ofício cujo perigo e fascínio muito deve à solidão e à ansia de liberdade, elementos que por volta dos dezesseis anos começavam a se revelar indissociáveis em sua vida.    

Antes de iniciar a preparação para sua quarta e última tentativa, por uma semana, refugia-se na casa da avó, em Piquete. Sente ter chegado o momento de se concentrar. Quer ficar absolutamente afastado de tudo e de todos. Naqueles ensolarados dias de janeiro, faz longas e solitárias caminhadas aos pés da serra da Mantiqueira. Não perde o Pico dos Marins de vista. É a mais alta montanha que seus olhos já tiveram diante de si. É como o IME. É o seu Everest. Sonha conquistá-la um dia. Sonha ver a vida das grandes alturas. 

Em Piquete percebe que caminhar ao ar livre lhe faz bem e, ao retornar à São José, sua rotina se define. Seus dias se dividem entre exercícios fisicos e desafios de matemática, física e química. Duas vezes por semana, acorda mais cedo para correr. Sem condições de pagar uma academia, improvisa seus halteres com latas de tinta, barras de ferro e cimento. De segunda a sexta, pelas manhãs, encontra o Tonhão na biblioteca do ITA. Se conheceram na Escola Técnica, mas somente naquele ano se tornam grandes amigos. O Tonhão se diplomou em eletrônica e por um tempo trabalhou na Philips antes de decidir cursar engenharia mecânica. Diz ter deixado a Philips porque queria “algo maior”. É o que há de comum entre eles naquele momento. Dividindo uma mesa, cada um se ocupa de sua lista de exercícios. Nas pausas entre um exercicio e outro, conversam sobre suas vidas. Ao meio-dia se despedem. Ao chegar em casa, almoça, cochila um pouco e ao final da tarde pedala até o Parque Santos Dumont para fazer barras, paralelas e abdominais. O que chama a atenção dos familiares e amigos é que parece não estudar, pelo menos não o esperado para alguém que pretende se tornar aluno do IME. Aparenta estar mais interessado em suas refeições, horas de sono e atividade física. Não se lembra de outro momento em que tenha dormido e se alimentado como naquele ano. Talvez na primeira infância. Tem um expressivo ganho de massa muscular. A mãe não gosta das mudanças no corpo do filho. “ Está ficando feio”. O pai conta-lhe que praticava halterofilismo quando tinha sua idade. Foi ele quem o iniciara nos esportes e numa alimentação mais equilibrada. Sua experiência pessoal ignora o dualismo corpo e espirito. A tensão emocional daquele ano vai se convertendo em disposição e músculos. Não é apenas o corpo que está mudando. Sua mentalidade começa a se modificar. As mudanças corporais são reflexo de seu esforço e disciplina. São reflexo de uma mudança interna. Ao aprofundar essas mudanças, começa a se diferenciar. Está se sentindo cada vez mais forte e credita isso ao conhecimento adquirido em nutrição esportiva. Lê tudo o que lhe cai nas mãos sobre vitaminas, minerais, ácidos graxos, neurotransmissores e aminoácidos. Sem dinheiro, pede aos pais lecitina de soja, óleo de figado de bacalhau e levedo de cerveja. Somados ao germe de trigo e à proteina de soja texturizada se tornam seus complementos alimentares. Atuam no desenvolvimento cerebral e muscular. Persegue o melhor de si mesmo. Quer aprender como funciona seu corpo. “Deveria estar estudando ao invés de tomar bomba.”. “O que esse vagabundo quer da vida? Só pensa em malhar”. “Deveria dar mais atenção à inteligência que ao físico”. Começa a dar de ombros ao ouvir esse tipo de discurso, lugar-comum dos sedentários pretensamente inteligentes. Inteligente é cuidar de si mesmo. É o que faz ao longo daquele ano. Sabe que passando no IME calará a boca dessas pessoas. Quem contestará sua inteligência? Ele está se esforçando de um jeito pouco convencional para um vestibulando porque ser aluno do IME não é seu autêntico objetivo. O que ele realmente busca é expandir seus limites de forma consistente, sem recorrer a atalhos. Desconfia de atalhos. Não acredita em pílulas mágicas. Acredita em intuição e vontade. Busca um crescimento equilibrado, e para ele tal crescimento não deve se limitar a hipertrofia muscular ou intelectual. Trabalhando as partes, não perde de vista o todo. Quer força e equilíbrio. Disciplinado, não se desvia de sua rotina. Não lhe importa o que digam. É muito cedo para se acomodar. É o que sente aos vinte, é o que sentirá aos quarenta quando retomará a rotina de dietas e  treinos com a mesma dedicação ao se desafiar em outra montanha. Quer seguir evoluindo. É o que o faz sentir-se bem. É o que o faz sentir-se vivo. Começa a observar as pessoas que se dizem felizes. Presas a empregos que lhes desagradam, não se desafiam. Os anos passam e não evoluem. Não reconhece nelas o menor traço de vitalidade. Envelhecem precocemente. Estão cada vez mais sedentárias. Os músculos atrofiam, a coluna se curva, a vontade se dobra diante da menor contrariedade. Queixam-se de tudo e de todos. Ao final de cada mês, dão um suspiro antes de voltarem a se enterrar. Não vê felicidade nisso. Não é o que o satisfaz. Vitalidade é a sua fome. Se uma rotina norteada por atividades fisicas e intelectuais alimentam seu apetite pela vida, ele a seguirá até o fim de seus dias. Descobre naquele ano a receita para alcançar seus objetivos. Jamais a esquecerá. Emocionalmente e fisicamente mais forte, o resultado divulgado naquele final de tarde de dezembro não poderia ter sido outro...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Pré-Estréia de Pretensas Virtudes - Primeiro Livro

Capa do Livro - obra do grande artista plástico Betto Pereira


... À época, como quem procura, começa a escrever. Num primeiro momento não reconhece em sua escrita um trabalho. Nem mesmo se pensa escritor. Apenas quer dar livre curso aos sentimentos, mostrar não ser um vagabundo qualquer, convencido está de poder provar que também seus erros e defeitos têm valor. Se no mundo à sua volta figuram falhas condenáveis
, sente em si o embrião de um outro no qual estes mesmos erros e defeitos serão essencias para dá-lo vida e protegê-lo. Refugia-se neste seu mundo. Não vê outro meio de seguir livre. Não quer retornar à rotina dos quartéis, nem se ocupar com nada que lhe amesquinhe a vida. Não está disposto a se submeter a um emprego regular de horários fixos. A simples ideia de passar um dia confinado num escritório, sujeito aos mandos e desmandos de um chefe, é-lhe abominável. “Só faço isso se não tiver outra alternativa.”. A mulher balança a cabeça, parece não entender, mas o apóia. Às vezes, ele dá algumas aulas particulares, mas é o salário dela que arca com as despesas do casal. Faz dois anos que se desligou do IME e nada sugere que não esteja perdendo tempo. Os fatos não sustentam sua versão de ter caído em algo maior, antes corroboram a opinião corrente de que sem diploma ele não será nada. “Já poderia ter concluído a graduação e estar empregado.” “É inteligente”, atestam, “Ou não quer nada com a vida, ou está se sabotando.". "Se não vai trabalhar, ao menos deveria procurar um psicólogo. É evidente que há algo errado.” Não lhes dá ouvidos. Sua recusa a se submeter a um analista não é menos veemente que a de se submeter a um chefe. A pressão ao redor recrudesce, mas não cede. Sente que não pode recuar. Passa os dias lendo e escrevendo. Stirner, Hermann Hesse, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Henry Miller, Dostoiéviski e outros artistas lhe fazem companhia. “ Mas estão todos mortos!”. “Não para mim”. “ Você precisa de amigos de carne e osso. Não sente falta de gente?”. Pouco a pouco procura menos os amigos. Pilhas de livros se acumulam pelo chão de seu quitinete em Botafogo. O que ganha com aulas particulares, gasta em sebos e livrarias. Ninguém compreende o que ele está fazendo. Novas censuras se somam às antigas. Um dia acompanha a esposa a um almoço de família, e um dos convivas - o mesmo que anos depois, ao tomar conhecimento de seus primeiros êxitos no mercado financeiro, o puxou a um canto daquela mesma sala para lhe pedir que aplicasse suas economias em ações - não hesita em disparar: “Não pensa em seus pais? Não vai se formar?” Não tem a menor intimidade com essa pessoa, nem com ninguém ao redor daquela mesa para que se permitissem semelhante atrevimento. Aquilo o pegou completamente desprevenido. Sua impressão foi de alguém ter sacado um revolver e o descarregado em sua pessoa à queima roupa, sem a menor chance de defesa. Logo entende o sentido das perguntas. Nada tem a ver com seus pais. Além de vagabundo, agora é também parasita. Vivendo às custas da mulher, incapaz de se sustentar, por vezes, não se sente um homem de verdade. Sem dinheiro, é visto com desconfiança. Torna-se um alvo, um homem marcado. Está exposto a outras condenações sumárias. Sua situação o envergonha, o revolta e o humilha. Procura uma defesa, mas não fará como todo mundo. Não correrá atrás de titulos acadêmicos. Não correrá atrás de emprego.  Sabe que não são estas recusas que fazem dele um alvo. O que faz dele um alvo é não ter dinheiro. Sabe que para calar essa gente, precisa falar a mesma língua. Precisa de dinheiro. Se tiver dinheiro não lhe ousarão apontar o dedo. Só que não fará como eles. Não procurará seu ganha-pão no mercado formal. Encontrará um outro jeito. Começa a separar trabalho de dinheiro. Não são a mesma coisa. Trabalho é o que o faz sentir-se vivo, o que dá sentido à sua vida. Dinheiro é o que paga suas contas, não é o que tem em vista. Não é o que determinará se ele seguirá ou não o que sua intuição lhe diz. Não ter dinheiro não será sua desculpa. "Não farei como todo mundo!". Desde pequeno observa com repugnância as pessoas se acomodarem a vidas que não lhes agradam apenas por dinheiro. Vê as pessoas se matando por dinheiro. Está decidido a não seguir o mesmo caminho. Foi por isso que abandonou o colégio técnico. Foi por isso que jamais se lamentou por ter se desligado do IME ou abandonado a UFRJ. Teme perder vitalidade fazendo o que não lhe propicia prazer. Teme reduzir sua vida a dinheiro e títulos acadêmicos. Os caminhos tradicionais não lhe interessam. Se neles prosseguisse seria por mera sujeição às convenções ou ao dinheiro. Seria por preguiça ou covardia. Teria a casa dos sonhos, carros do ano, um belo álbum de viagens, mas não teria uma vida de verdade. Seria um escravo moderno. Seria o seu fim. Mil vezes seguir sendo alvo de críticas a ostentar as pretensas virtudes dos escravos modernos. É evidente que não o agrada não arcar com suas próprias despesas, mas sua decisão de não repisar os mesmos passos de seus amigos prevalece. Surge o impasse. Enquanto procura solucioná-lo, aprende a ser paciente, a esperar, e com quanta impaciência espera. O dinheiro é seu calcanhar de Aquiles. Tudo parece se resumir a tê-lo ou não. Senhor dos destinos, é o todo-poderoso. Todos o idolatram. Para os pretensos homens, é o tamanho do pênis. É sinal de virilidade. Para as pretensas feministas, é o símbolo do empoderamento feminino. Para os pretensos revolucionários, é causa e consequência das misérias humanas. É a medida do homem. Em seu nome desfilam numa marcha insensata a esquerda e a direita, os neoliberais e os marxistas. Vê os amigos caírem de joelhos, sujeitarem-se, brindarem e se embebedarem em nome desse bezerro de ouro. Orgulhosos de si mesmos, não resistem ao seu poder de sedução: tornam-se vassalos dos poderosos. Sacrificam suas vidas às grandes corporações. Estão ganhando cada vez mais dinheiro. “Evoluímos!”. Os anos passam e o passado retorna. É sempre o mesmo enredo. Só o cenário muda. O tempo das Quatro Rodas e dos posters das coelhinhas da Playboy ficou para trás. Agora colecionam prostitutas de luxo e carros importados. Acreditam ter encontrado o caminho das pedras. Acreditam terem se tornado homens de verdade. Querem ensiná-lo o caminho. Insistem em mostrá-lo um atalho. Numa festa de casamento o convidam para acompanhá-los a um puteiro. Noutra, chamam-no ao estacionamento para ver os carros da galera. “Em pouco tempo você poderia estar como a gente.”. Ele desdenha. Continuará a pé. Desconfia de atalhos. Não ignora o preço de suas escolhas. Mais uma vez, não se deixa seduzir. Sente o que está por trás de tudo aquilo. Nada tem a ver com a paixão por carros e mulheres. Novamente, não os seguirá. É apaixonado e ambicioso, mas suas paixões e ambições são de outra natureza. Os amigos se ofendem. Não se esforça em se explicar ou esconder a repugnância por toda aquela ostentação. Ele os toma por presunçosos. Eles, por outro lado, o veem como fracassado. Se afastam cada vez mais. Falam línguas diferentes. Não se compreendem. Não compreendem que as ambições de um homem podem ser grandes sem gravitarem em torno do dinheiro. Não faz dele seu ídolo, nem o desejo de possui-lo se torna sua mola propulsora. Não vê sentido em ter cada vez mais à custa de sua liberdade. Se não é hipócrita tampouco é ingênuo: sabe que precisa de dinheiro se não quiser se escravizar. Sabe que precisa de dinheiro para se defender. Decide investir o que ele e a mulher conseguem economizar. O Brasil vive o boom das commodities, e ele descobre a Bolsa de Valores. Será a solução de seu impasse. Enquanto vai se familiarizando com o mercado acionário, segue lendo e escrevendo. Continua errando. Dúvidas e angústias o invadem. Os resultados nem sempre são favoráveis, mas insiste. Aos seus olhos se defende com a ideia de que um dia será recompensado. Será sua vingança e redenção. Agarra-se a essa ideia. Sua realização se torna seu único desejo e desespero. Foi tudo o que lhe sobrou. Absolutamente despojado do supérfluo, faz as apostas de sua vida. Novamente não há plano B. Parece estar revivendo os anos anteriores ao seu ingresso no IME. Novamente o chamam de vagabundo. Novamente a procura de outros como ele. Novamente em busca de algo maior que dinheiro. Sempre essa busca de algo maior. É sua ideia fixa. As semelhanças entre o presente e o passado se sucedem e alimentam sua esperança de que tudo correrá bem. O passado continua presente em sua vida. Tudo recomeça. É o Eterno Retorno. Novamente, uma ruptura radical se aproxima. Sua intuição lhe diz que logo deixará o Rio. “Para onde?”, pergunta sua mulher. Não lhe diz. Não tem a menor ideia de seu proximo destino. Sabe apenas que a vida o espera em outro lugar. Seu horizonte começa a se modificar. Sente uma irresistível atração em aventurar-se em sua direção. Não pode evitá-la, não quer evitá-la. Aos poucos entrega-se à sua intuição. Reencontra a fé em si mesmo. Confia em seu destino. “Ele mudou depois que saiu do IME. Parece ter perdido a razão”, comentam os amigos. Um vazio se forma a sua volta. Tempestades se anunciam. Sente estar sendo testado. Os meses passam, e as infelicidades e incertezas não se desfazem. Seu inferno parece não ter fim. Às vezes o nevoeiro se torna menos denso e pode ver alguma coisa. Nunca é tanto quanto gostaria, mas é sempre o necessário para continuar. Foi assim naquela tarde de novembro quando sua mulher ligou do trabalho, com a voz embargada, comunicando que ele recebera uma menção honrosa por seu prematuro livro de crônicas. Ao desligar o telefone, chora, novamente um copioso choro de felicidade e alívio. Sua intuição não o enganou. A vida não o abandonou. Sente ter alcançado o ponto em que não lhe será possível voltar atrás. Ou se tornará escritor ou nada será. Passa a rechaçar com mais veemência a ideia de procurar emprego e o argumento de que um diploma não o atrapalhará a escrever. Começa a lhe ficar claro o porquê de passar tantas horas lendo e escrevendo quando todos lhe cobravam que desse outro emprego ao seu tempo: quer liberdade para seguir alimentando e protegendo o que acredita ser seu autêntico destino. Arrastado por um impulso decisivo não percebera, mas naqueles dias de angústia, vividos entre leituras descosidas e esboços autobiográficos, caminhava em direção a sua própria linguagem. O que sempre buscou assume contornos inesperados: nunca um objetivo definitivo, antes uma conquista diária. Se parecia errar era porque não tinha consciência de tudo o que lhe sucedia. Revisitando seu caminho tem a impressão de o tempo todo ter sido conduzido por algo maior do que ele próprio. Seria pretensioso dizer que foi ele quem escolheu seu destino. Ele não escolheu o que se tornaria. Apenas obedeceu algo em si mesmo. De um jeito ou de outro, estamos sempre obedecendo. É assim que chegamos aonde chegamos. Foi assim que chegou ao seu livro. Se hoje não se imagine outro, não se queira outro, jamais se pensou escritor. Simplesmente aconteceu...

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Making a Book

Dedicatória

Dedica seu livro a todos que lhe cruzaram o caminho e sem desconfiarem de coisa alguma estimularam-no a escrever - em especial àqueles com os quais conviveu numa prestigiada instituição militar de ensino. Orgulhava-se de se pensar um deles até o dia em que percebeu que não era: apenas estava entre eles. Se com essa percepçao ainda não viesse a saber quem era e o que faria consigo mesmo, soube, entretanto, quem não era e o que não faria.

Nos anos seguintes viveria os silenciosos e profundos desdobramentos de sua descoberta. Considera-a a mais significativa que fez sobre si mesmo, pois ao mesmo tempo que lhe subtraiu o alento para seguir na companhia de seus amigos encorajou-o a enveredar pelo solitário caminho da escrita, onde suas descobertas teriam continuidade e sua vida, um sentido. 

Tivesse a ignorado, ignoraria a si mesmo. Seria mais um a engrossar a multidão dos que batem ponto num emprego qualquer, desanimado e sem perspectivas, desperdiçando sua vida fazendo o que não acredita apenas por dinheiro ou para dizer aos outros que havia se tornado alguém. 



 


"POR NÃO COMPREENDERMOS A SIGNIFICAÇÃO DAS PALAVRAS, NEM EU NEM MEUS AMIGOS, UMA COISA SE TORNOU MUITO CLARA: QUE HÁ MANEIRAS DE NÃO COMPREENDER E QUE A DIFERENÇA ENTRE A NÃO COMPREENSÃO DE UM INDIVÍDUO E A NÃO COMPREENSÃO DE OUTRO CRIA UM MUNDO DE TERRA FIRME AINDA MAIS SÓLIDO QUE AS DIFERENÇAS DE COMPREENSÃO. TUDO QUANTO OUTRORA EU PENSAVA TER COMPREENDIDO DESFEZ-SE E EU FIQUEI COMO UMA LOUSA LIMPA. MEUS AMIGOS, POR OUTRO LADO, ENTRINCHEIRAVAM-SE MAIS SOLIDAMENTE NA PEQUENA VALA DE COMPREENSÃO QUE HAVIAM ESCAVADO PARA SI PRÓPRIOS. MORRERAM CONFORTAVELMENTE EM SUA PEQUENA CAMA DE COMPREENSÃO, PARA SE TORNAREM CIDADÃOS ÚTEIS DO MUNDO. SENTI PENA DELES E SEM DEMORA ABANDONEI-OS UM A UM, SEM O MENOR PESAR."

HENRY MILLER



Paris, outubro de 2018



sexta-feira, 23 de março de 2018

Desconstrução

Decide preparar uma xícara de café. Enquanto espera a água ferver, dá uma espiada no jardim em frente ao seu apartamento. Está nevando novamente. Lembrou-se da senhora que mora ao lado dizer que este mês de março está sendo atípico em Paris. Não era para estar nevando. Não a questiona. Para ele, tudo parece atípico neste momento de sua vida. Sente que há algo acontecendo consigo em Paris. Não sabe dizer o que é, mas deseja que continue. São 4:14. A mulher e o filho estão dormindo. Daqui a pouco acordarão. Há horas está sentado próximo ao aquecedor. Não consegue dormir. Seus olhos vão de um lado a outro relendo os capítulos anteriores. Está satisfeito com o que escreveu ontem embora não ignore que dali a instantes deixará de estar. É sempre a mesma coisa. Por hora, no entanto, ainda acha que está bom. Conseguiu encontrar o ritmo. No texto que começou a escrever não o encontrou. Sabe que está perdido. Relia os anteriores na esperança de reaver o fio da meada. Em vão. Melhor preparar o café e colocar uma música, pensa. Faz parte de seu ritual. Acredita que a música e o café o ajudam a encontrar o ritmo de um texto, e com ele, as palavras. Foi assim à tarde, quando estava num Café próximo ao seu apartamento. Ao entrar, percebeu que tocava Cake. Há anos não ouvia a banda, acha que desde que saiu do IME. Uma torrente de lembranças sobreveio-lhe. Jamais esqueceu as rodas de samba na Praia Vermelha, as viagens pelo país com os companheiros de quarto, o contato com suas famílias e o deles com a sua, as madrugadas solitárias nas salas do terceiro andar se preparando para as recuperações orais, os primeiros namoros, as dores de cotovelo, as conversas íntimas no banheiro e nos bancos do alojamento, os concertos no Municipal, os bailes na Rocinha e na Penha, a vaquejada em Xerém e as paradas obrigatórias no Select ou na Kombi do Chico para matar a fome após as agitadas noites na Cozumel, no Guanabara e nas boates de Copacabana. Fora profundamente marcado por tudo isso, e por todos aqueles finais de semana de serviço ou detido no quartel, pela raiva, dor e alívio ao trancar matrícula e, mais tarde, por ocasião de seu desligamento. Todas essas experiências desconstruíram-no. Jamais seria o mesmo. Vivendo tudo aquilo, ia deixando muita coisa para trás. Perdia a inocência. Anos mais tarde, procuraria algo que o ajudasse a se reconstruir. Na época, não tinha consciência de nada disso, apenas ia vivendo. A semente, entretanto, estava sendo semeada. Aos poucos, germinaria entre a monotonia e disciplina de um quartel e a pluralidade da noite carioca. O escritor nasceria. Escrevendo se reconstruiria. Deve isso à cidade, deve isso ao IME, não nega. Talvez não escrevesse se não tivesse passado por tudo aquilo. A mãe preferia que não tivesse. Agora que é pai a compreende. Se dependesse de sua vontade, ele teria ficado perto de casa indo para o ITA. Desconfiava que o filho não daria certo no Exército. Estava tão certa quanto errada. Não considera que ter ido para o IME foi um erro. Se foi, era um erro que tinha de cometer. Era o que queria. Nostálgico, sensibilizado por todas aquelas lembranças, disse à mulher que voltaria àquele Café no dia seguinte. Planejava escrever numa daquelas mesas. Não imaginaria que seria pego de surpresa. Foi. Desde o início a escrita o pega de surpresa. Chegou ao Rio achando que se tornaria engenheiro militar. Saiu de lá decidido a se tornar escritor. Não estava em seus planos, nunca esteve. Simplesmente aconteceu. Mal havia pedido dois expressos quando sentiu que um texto surgia. Deveria tê-lo rabiscado ali mesmo, mas deixou para depois. Tem a mania de deixar tudo para depois. Agora está batendo cabeça atrás do que horas antes espontaneamente veio até ele e recusou.
Continua...

quarta-feira, 31 de maio de 2017

O Aprendizado




Há quase seis anos Theo nasceu. Antes de seu nascimento já era da opinião que seria mais importante cuidar dele em seus primeiros anos de vida do que me dedicar a qualquer outra atividade, mesmo as que me são caras, como a escrita e a musculação. A despeito do que me aconselhavam, jamais pensei diferente. Nunca considerei a possibilidade de deixá-lo numa creche, ou sob os cuidados de uma babá. Ainda assim, somente quando o peguei no colo pela primeira vez realmente senti que não tomaria outra decisão que não fosse permanecer nos anos seguintes, ali, ao seu lado. Não apenas por ter me sentido responsavel por alguém tão pequeno e indefeso, mas também porque sempre alimentei o desejo de ter uma ligação íntima e profunda com meu filho. O preço desse tipo de relacionamento, e eu não me enganava, seria menos tempo e energia para me dedicar à escrita e à musculação. Assim, em seus primeiros meses, a propria leitura quase deixou de fazer parte de minha rotina. A disposição que me restava apos um dia corrido empregava na academia enquanto Theo, à noite, ficava com a mãe, o que me propiciava um alivio das tensões inerentes àquele periodo de adaptação - não apenas nos primeiros meses, mas anos em que minha vida havia virado de cabeça para baixo. Eu estava me tornando pai. Não se torna pai quando o filho nasce. Tornar-se pai sempre pareceu-me um processo diario, uma construção constante, como escrever ou hipertrofia fisica. Exige dedicação e amor pelo processo de aprendizado e construção porque não é facil, nem um pouco, como tudo o que exige que abdiquemos de velhos habitos e rotinas na busca de um objetivo maior.

Com o fim da licença maternidade da Namorada, meus dias passaram a transcorrer em meio aos banhos, às papinhas, às incontaveis trocas de fraldas até o ensinarmos a fazer xixi e cocô no pinico, às recorrentes preocupações em saber se estava bem agasalhado, ou se alimentando corretamente e bebendo água o suficiente. Quando sobrava algum tempo ou dormia, ou tomava banho, ou me alimentava. No seu primeiro ano de vida, se mal conseguia  ler, o que dirá escrever. Ia dormir exausto e acordava cansado, mas o que me importava era estar perto não apenas para dar-lhe carinho e atenção, mas também para dizer não sempre que fosse necessário - e como foi. Queria, sobretudo, estimular suas aptidões, dando as condições e o incentivo para que as desenvolvesse. Desejava vê-lo se sentindo cada vez mais confiante até que não precisasse mais das mãos dos pais para dar seus primeiros passos ou equilibrar-se em sua bicicleta. 

Nesta semana que marca o encerramento de seus três primeiros anos escolares, torno a sentir o quanto é gratificante a um pai acompanhar seu filho conquistando confiança em si mesmo. Ao tomar a decisão de abrir-me ao aprendizado da paternidade, não ignorava, como disse, que sentiria falta de tempo para escrever e me ressentiria da perda desses momentos solitarios sem os quais me sinto perdido. Sem escrever, temia estar me desviando de mim mesmo. Não podia imaginar o quanto estava enganado. É tudo muito intenso e difícil, como tão bem descreveu, mais abaixo, a escritora Natalia Ginzburg sobre conciliar a criação de seus filhos e o seu ofício de escrever, que não podemos ver a que descobertas essa experiencia nos encaminha. Ontem, dia em que Theo fez sua apresentação de final de ano no judô, ao ver sua garra e confiança nas lutas (link acima), lembrei-me da insegurança que sentiu ao começar numa turma de judocas mais experientes, de sua força quando começou a frequentar uma escola publica francesa, assustado, por se ver cercado de pessoas que não o compreendiam, e nem ele a elas, além de tantas outras ocasiões em que estive proximo para encoraja-lo a seguir em frente. E ele seguiu. Na noite de ontem, quando me abraçou, senti que ter sido presente e vivido intensamente a experiencia de tornar-me pai, algo indiscutivelmente tão estressante como enriquecedor, não me afastou da escrita ou da academia, como muitas vezes, desesperado, temi. Ser pai não me privou de quem sou; antes, revelou-me um pouco mais de mim mesmo. Ter tido pouco tempo para outras atividades para acompanha-lo levou-me a não perder tempo com o que não me fosse realmente essencial como organizar meu livro ou me preparar para uma competição de fisiculturismo.



"E depois nasceram meus filhos e, de início, quando eles eram pequenos, eu não conseguia entender como era possível escrever tendo filhos. Não entendia como seria possível me separar deles para seguir um fulano num conto. Comecei a desprezar meu ofício. Às vezes sentia uma desesperada saudade dele, me sentia em exílio, mas me esforçava em desprezá-lo e denegri-lo para cuidar dos meninos. Achava que devia agir assim. Passei a preocupar-me com a papa de arroz e a papa de cevada, se havia sol ou se não havia sol, se ventava ou não quando ia levar os meninos para passear. As crianças me pareciam algo muito importante para que eu me desviasse atrás de estúpidas histórias e de estúpidas personagens embalsamadas. Mas sentia uma feroz nostalgia e às vezes, à noite, quase chorava ao lembrar como meu ofício era belo. Pensava que algum dia mais cedo ou mais tarde o recuperaria, mas não sabia quando: achava que deveria esperar que meus filhos se tornassem adultos e fossem embora de mim. Porque o que eu sentia por meus filhos naquela época era uma coisa que eu não havia aprendido a dominar. Mas depois, pouco a pouco, aprendi. Nem precisei de muito tempo. Ainda preparava o molho de tomate e a semolina, mas ao mesmo tempo pensava em coisas para escrever. (...) Escrevi um conto longo, o mais longo que já tinha escrito. Recomeçava a escrever como alguém que nunca havia escrito, porque fazia muito tempo que não escrevia, e as palavras estavam como que lavadas e frescas, tudo estava de novo como que intacto e cheio de sabor e de cheiros. Escrevia à tarde, quando meus meninos iam passear com uma garota do povoado, escrevia com avidez e alegria, e era um outono belíssimo e todo dia eu me sentia muito feliz. 

(...) Assim é o meu ofício. Dinheiro, vejam, ele não rende muito; aliás, sempre é preciso fazer simultaneamente algum outro trabalho para viver. Contudo, às vezes ele rende pouco, e ter dinheiro por sua própria virtude é uma coisa boa, como receber dinheiro e presentes das mãos do ser amado. Assim é o meu ofício. Não sei muito - torno a dizer - sobre o valor dos resultados que me deu e que ainda poderá me dar: ou melhor, dos resultados já obtidos conheço o valor relativo, certamente não o absoluto. Quando escrevo algo, frequentemente penso que aquilo é muito importante e que sou uma grande escritora. Acho que acontece com todos. Mas há um cantinho de minha alma onde sempre sei muito bem o que sou, isto é, uma pequena, pequena escritora. Juro que sei. Mas não me importa muito. Simplesmente não quero pensar em nomes; percebi que, se me perguntarem " um pequeno escritor como quem?", fico triste ao pensar nos nomes de outros pequenos escritores. Prefiro acreditar que ninguém nunca foi como eu, por menor que tenha sido,  por mais que seja um mosquito ou uma pulga de escritora. O que é importante é ter a convicção de que se trata de um autêntico ofício, uma profissão, uma coisa que será feita por toda a vida. E, sendo um ofício, não é uma brincadeira. Há inúmeros perigos além dos que já citei. Somos continuamente ameaçados por graves perigos já no ato de preencher nossa página. Há o perigo de começarmos a tentar seduzir e cantar de repente. E há o perigo de ludibriar com palavras que de fato não existem em nós, que pescamos por acaso fora de nós e que enfileiramos com destreza porque nos tornamos espertos. Há o perigo de bancar o esperto e enganar. Como veem, trata-se de um ofício bastante complicado: mas é o melhor que há no mundo. Os dias e os casos de nossas vidas, os dias e os casos dos outros que assistimos, leituras e imagens e pensamentos e discursos, tudo isso o sacia e cresce dentro de nós. É um ofício que se nutre de coisas horríveis, devora o melhor e o pior de nossas vidas, tanto nossos sentimentos ruins quanto os sentimentos bons correm em seu sangue. Nutre-se e cresce em nós."

Trecho extraído de As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg